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chego à casa. Abre-se a porta e a sala está entulhada. Dou dois passos e já tenho que desviar de uma caixa. Umas outras são quase pilastras mal conjuntadas prontas a desmoronar. Passo com medo e pressa.
Procuro a dona da casa.
Já habituada àquela confusão, ela desliza entre caixotes, caixetas, baús, arcas. 
Senta numa nesga de sofá descoberta com as pernas próximas ao corpo. Tem alguns roxos, provavelmente de bater em quinas dessa confusão.
Olha e me sorri. 
Eu me sento no único pedaço de chão que parece estar vazio, o único no qual couberam meus dois pés paralelos em pé. 

Observo-a distante, esquisita, um semblante vazio.

- Dora, o que é isso tudo?
Ela me olha como se não me ouvisse. 
- Você viu como choveu ontem? Adoro tempos frios. São tão mais agradáveis.
- Sim, são. Mas você não me respondeu.
- E o Temer, será que cai?
- Tomara, mas você ainda não me respondeu.
- To com fome. Topa um japonês?
- Desisto.

Ela se ajeita para chegar mais perto de mim. 

- Isso são coisas que eu separei para irem embora. As olhei, escolhi, decidi. Empacotei. Mas agora não sei como fazer. Não me pertencem, não fazem parte de mim. Porém ocupam esse espaço que parece que  vai morrer se tiver vazio...

- Japonês, então.

Ela pegou a bolsa e saímos.

reminiscência

ando com aquela sensação esquisita de quem esqueceu algo.

sabe quando você vem carregando alguma coisa, e de repente não está mais?
E o coração sobressalta quando percebe a ausência, o corpo sua frio.
Uma eletricidade percorre sua espinha e sua mente repassa em segundos seus últimos atos, buscando a segurança da memória de ter deixado em local protegido. Ou pelo menos ter entregue a quem de direito era. Ou vai ver você nem saiu de casa com isso.

Olha em volta.
Refaz o caminho.
Será que deixei cair?

Revira a bolsa, os bolsos...
O coração...

Com o incômodo descoberto, a cabeça relaxa.
Respiro fundo. 
Afinal, é só mais um dia em que eu me lembro que esqueci.


por onde andei?

Sento aqui nesse canto escuro empoeirado que não visito há meses.

O sentimento é confuso, contraditório, sinuoso, desconexo, às vezes.

Desconcertante.
(Como um roupa esquisita que se veste e quando se anda na rua, parece que todos te olham. Mas ninguém te percebe, na verdade. Você que acha que exala incômodo a cada esquina.)

A lembrança viaja, o arrepio da nuca.
Fecho os olhos.
E aquilo me machuca.

Faço uma oração.
Nada me alivia.

Pesado coração
Desejo pungente.
E agora?

Me levanto.
- vou me embora.

Mas atravesso a porta a passos curtos e lentos para me convencer de ir.

a memória é meu único souvenir.


Porque não, não é resposta.

Quando a gente é criança, parece que todos os nossos desejos são justificados.
Criança quer tudo, aponta para tudo, pede tudo.
E se não é atendida, enche o interlocutor de porquês seguidos e de argumentações fantásticas.
Se vencido pelo cansaço ou pela alegação, a criança recebe sua vontade.
Se não, é enganada com outra coisa.

Nesses dias percebo que ser adulto é reprimir desejos com os ecos das negativas recebidas.

Queria ser criança e ter direito aos meus infinitos porquês e poder exprimir minhas argumentações fantásticas e ser vencida pelo cansaço e ser enganada com outra coisa.

Qualquer outra coisa para esquecer.


Tenho um sonho em minhas mãos...

Na playlist aleatória da minha vida, hoje toca "Sonhos" do Caetano.


As coisas simples têm beleza, mas as complexas têm muito mais. Sempre achei o efêmero absurdamente excepcional, porque é preciso capturá-lo no momento em que ocorre. 

E é único.

Tenho nada para dizer que já não tenha dito sem falar. 

A língua portuguesa é uma das mais difíceis do mundo. E também a mais rica.
O silêncio é ainda melhor porta-voz.

Batidas na porta da frente, é o tempo...

Ah...o tempo.

O tempo é essa criança correndo na sala, curiosa com tudo. Você tira algo da mão dela, ela pega outra coisa, você se distrai, ela bagunça, você arruma, ela destrói. 
Você procura algo que a entretenha e de alguma forma, descobre. Você acha que é o mestre do tempo.

E então o tempo é o mar em dia de ressaca. No meio do oceano, você não alcança o chão, é calmo, mas cansativo. Boiar é chato, você quer sair. Enquanto se aproxima da margem, as ondas batem, reviram suas pernas como um redemoinho, te puxam pro fundo e você acorda em meio a areia com os pulmões cheios d'água. Foi dolorido, mas você conseguiu. E você acha que superou o tempo.

Mas ele agora é tempestade. Chovendo, ele inunda. Troveja, você conta um e o relâmpago risca o céu de cima abaixo, o barulho assusta. Você caminha com dificuldade com água no joelho, foge das árvores que são cobertura, mas não são abrigo. Uma casa no horizonte, você se desloca naquela direção. Você entra na casa. E você acha que ganhou do tempo.

E o tempo é incêndio. Protegida pelo abrigo, você não percebeu a faísca, ignorou a primeira chama. Sentiu conforto no calor e quando deu por si, o fogo se alastrava pela casa, absorvia suas paredes em altas labaredas, você está longe da porta. Quebra uma janela, corta o braço e cansada, você senta num canto e pede trégua.

O tempo não concede.

Ele te consumiu.