Meu edifício inteiro.

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Clarice Lispector


há aspectos da minha personalidade que nem em muitos anos da minha vida, que nem com os melhores terapeutas eu irei conseguir superar. são aspectos já tão enraizados em mim, que extirpá-los significaria anos e anos de procedimentos tão invasivos que acho que chegaria o dia em que eu não saberia quem eu sou. por exemplo, a eterna necessidade de ser diferente. e por ser diferente, eu quero dizer quebrar regras. como a regra que diz que devemos começar toda frase com letra maiúscula. logo me vem a cabeça o porquê. e disso vem outro defeito: tudo eu tenho que questionar. e as coisas têm que ter uma lógica para mim. uma lógica que nem sempre é a do mundo, mas que é a minha, e que o mundo deve se adaptar para ser exato e compreensível para mim. eu quero padronizar os acontecimentos, as pessoas, as ideias. coloco tudo em gavetas separadas e devidamente classificadas. eu quero organizar o impossível.

eu quero dar o meu sentido as coisas dos outros. como se o outro fosse uma extensão de mim. e o outro é esse outro. aquém, além, não sou eu. não é meu. mas se eu não controlo, se eu, de alguma forma, desconfio que não sei, que desconheço, que não faço ideia, eu piro. conto os dedos, ainda são dez. 4 + 6 ainda são dez. e dez e dez são vinte. ainda são vinte. a Terra gira ao redor do Sol. A lua ao redor da Terra. O mundo ainda gira, meus pés ainda estão no chão.

E percebo que eu esqueci de respirar. E agora estou cansada. Não quero mais quebrar as regras. Não quero mais ser eu.

Mas eu não sei ser outra. essa outra, aquém, além, que não seja eu.

Um comentário:

Samuel Medina (Nerito Samedi) disse...

É verdade. Há em mim essas estruturas. E o pior que sei que muitas dessas estruturas são nocivas. Por exemplo, a culpa. Ela está tão entranhada em mim que parece que nasci com ela, que preciso dela pra pensar, pra andar, pra respirar.