quem te espera?

arrumo mais uma prateleira da estante. Organizo os livros por cor. Desisto. Melhor por ordem alfabética. Autor ou título?

O que importa? Sento na cama, olho o espelho. Expiro, inspiro. O relógio fez tic.
Você ainda não chegou.

Vou ao banheiro, lavo o rosto, mijo, lavo a mão, penteio o cabelo, retiro um cravo, tiro um pelo no canto da sobrancelha. O relógio faz tac.
Você ainda não chegou.

Vou até a cozinha, descasco uma laranja. O sumo é doce. Engulo os caroços. Pego uma banana ainda meio verde. Sento no banco em frente ao fogão. Abro a geladeira. Fecho. Abro o armário. Fecho. O relógio fez tic.
Você ainda não chegou.

Na sala, eu sento no sofá, ligo a tv, procuro um programa, começo três não termino nenhum, O relógio faz tac.
Você ainda não chegou.

Pego o celular, jogo um jogo, perco outro. Vejo o feed do fb, as notícias que a mídia selecionou, a previsão do tempo para os próximos dias... fará sol e choverá. Haverá dias nublados quentes e outros frios. O relógio parou.
Você ainda não chegou.

...

- eu não quero mais saber dessa conversa.
 
E foi-se embora.
 
Volte aqui, ela pensou. Em vão. Ela não voltaria. Não agora. Talvez nunca. Tomara que não nunca. Ela gostava da outra. Era um alívio tê-la. E era uma delícia também, dessas que a gente se lambuza e come com os dedos e suja as mãos. E depois encontra pedaços dela em locais esquisitos e isso traz uma lembrança boa de como foi bom tê-la e aquilo deixa em você um desejo pungente que implora para ser saciado antes que você transborde.
 
E algumas vezes eu transbordei antes de ter a possibilidade de fazer a coisa com a propriedade que ela merece, com a paz e o descanso e a atenção. Pensando agora, ela sempre foi uma intensidade que eu não podia controlar, senão me entregar e sair deixando suas marcas onde pudesse.
 
Ah... vontade de escrever como era bom tê-la.
Mande notícias.

trabalho, alhos e bugalhos!

eu costumava caminhar para o trabalho. Era a forma de eu me iludir que fazia uma atividade física todos dias - mesmo com a roupa e com o calçado inadequados. Era uma rotina curiosa. Descia a rua e sempre encontrava o mesmo mendigo no mesmo local. Sua pele negra contrastava com a parede branca do prédio no qual ele se encostava. Todos os dias ele estava atendendo uma necessidade humana, que nós em nossas casas fazíamos no privado: fosse urina, fezes, ou até uma masturbação matinal, afinal quem não gosta de um dia começado com um orgasmo.

Eu passava por ele tentando não reparar. Mamãe me ensinou que reparar é feio. Então eu dava àquilo a naturalidade que aquilo devia ter e não tinha. Atravessava a rua e passava por um dos locais onde a educação é mercadoria cara. Recentemente, outro prédio da mesma instituição foi construído ao lado. O desenho é de Niemeyer. O local é enorme, com um longo pátio e dois lagos pequenos e um jardim. Tudo devidamente cercado por grades. A obra é para ser vista de longe. Um único guarda vestido de terno preto no calor carioca se certifica disso.

Caminho pela rua que se chama praia, mas a praia mesmo está a 4 pistas de distância. A vista mais bonita dessa cidade tem uma das baías mais sujas do mundo. O cartão postal está sempre no meu horizonte. Eu me dirijo para o bairro onde ele se localiza. Mas o cartão postal é como um sonho. Eu me aproximo dele todos os dias sem nunca realmente tocá-lo. Meu destino fica um quilômetro antes. 

Da minha janela eu vejo o mar. Vários barquinhos e a ponte que liga um município ao outro. Se você prestar atenção, dá para ver, vez ou outra, um avião pousar no aeroporto. O bondinho desce, sobe. Os passarinhos cantam, enquanto as palmeiras balançam com o vento.

Mas a universidade se expandiu e nos mudamos. Agora da minha janela cinza eu vejo um outro prédio com muitas antenas no topo, com muitos símbolos, de muitas operadoras, embora a recepção do celular seja péssima na minha nova sala.

Não caminho mais. Corro para atravessar 4 pistas sob a pressão do homem verde que a qualquer minuto pode virar uma mão vermelha. Dá para sentir todos os carros com a marcha devidamente engatada, os ônibus como touros nervosos prontos para atacar. Ando por entre centenas de pessoas e centenas de pessoas passam por mim.

Agora sou parte da selva de pedra. Os sinos da igreja anunciam o meio dia. O ascensorista me alerta sobre a quantidade de assaltos e a minha sala não tem porta. 

Estou num andar tão alto quanto qualquer expectativa.